contributos para uma fenomenologia da futilidade
incluindo uma prática escala científica para o dia a dia!

Nunca me tinha acontecido antes, mas recentemente dei por mim duas vezes, ambas em jeito de auto-defesa, a tentar explicar a exigência social e profissional do “aspecto cuidado”, e a forma como ela é tão mais radical e exaustiva quando aplicada às mulheres.
A existência de duas bitolas diferentes não era já um dado adquirido?
Enquanto o fazia, mal armada de teoria feminista porque achava que esse módulo já tinha ficado arrumado, cheguei a uma conclusão interessante sobre esta economia da futilidade: o “aspecto cuidado” é um conceito performativo.
Sim, claro, a sociedade gostava que fossemos bonitas, esguias, jovens, atraentes e sensuais. Exige-o, de certa forma, e penaliza-nos quando não o somos (também nos penaliza quando somos, mas essa parte fica para outro dia). Não quero perder muito tempo com esta exigência, porque manifestamente também faz parte do tal módulo anterior.
Mas o “aspecto cuidado” é diferente da obrigação de ser atraente, porque exige, mais do que resultados, um investimento. Mais concretamente, a demonstração de que houve um investimento de tempo e dinheiro.
Idealmente resultou e eu fiquei mesmo com ‘melhor aspecto’, mas se não tiver funcionado, pelo menos tem de ter ficado claro que tentei.
O que a sociedade me pede, quando me exige um “aspecto cuidado” não é que fique bonita, é que torne visível a minha sujeição voluntária aos seus ditames.
Um exemplo que me marcou muito, e que julgo espero que tenha mudado entretanto com a revolução cinzenta da pandemia, foi o dos cabelos brancos.
Há muitos anos, seguia um blogue de uma miúda novinha que tinha alguns cabelos brancos. Não era um blogue muito conhecido, mas ainda assim a autora tinha muitas haters, de uma estirpe especialmente cheia de fel. Nunca me esqueci do comentário de uma delas: que até ficava mal ela ter aquele aspecto descuidado, cheia de cabelos brancos com aquela idade, que era uma vergonha e que se devia cuidar mais, não se podia deixar ir daquela maneira.
Eu, feita tolinha, apesar de já ter frequentado os módulos do ABC do feminismo referidos acima, fiquei genuinamente espantada. Achava que as mulheres que escolhiam pintar o cabelo o faziam para contrariar o envelhecimento e a perda de capital social e sexual que lhe estão associadas. Mas afinal, ter ou não ter cabelos brancos também impactava o “cuidado” do aspecto? Era uma obrigação social escondê-los?
A pobre rapariga podia envelhecer ao ritmo do corpo dela como toda a gente, mas tinha de demonstrar ativamente que estava a combater esse envelhecimento? E não através do suicídio, que é a única forma reconhecidamente eficaz de combater o envelhecimento, mas através da camuflagem?
Sei que isto não é geral - no “cuidado” como em muitos outros aspectos da vida em comum, há códigos sociais e culturais distintos. Se aquela blogger fosse uma intectual de Lisboa em vez de uma rapariguinha de uma cidade da província, se calhar aceitavam-lhe os cabelos brancos (mas criticavam outras coisas, não se preocupem).
Lembro-me de dois momentos em que a disparidade destes códigos sociais e culturais me ficou muito clara.
O primeiro, foi quando comecei a dar aulas: de repente, no dia das apresentações de trabalhos, as alunas apareciam-me vestidas como se fossem para a discoteca. Das primeiras vezes, achei que tivessem mesmo uma festa a seguir, ou algo do género, mas depois percebi o que estava a acontecer: elas acreditavam que deviam ir com um aspecto cuidado para uma apresentação da faculdade e aquele era o conceito de aspecto cuidado de que dispunham.
O segundo momento foi de novo num blogue e deixou-me outra vez muito espantada (ou eu era muito tolinha ou tinha uma extraordinária resistência ao cinismo, porque realmente estou a reparar que me espantava com alguma frequência).
A autora deste segundo blogue era uma personagem muito brega em todos os sentidos que quiserem dar à palavra, incluindo mas não limitado à falta de carácter1. Um dia, num post, criticava Francisca van Dunem por ter ido para ministra e não ter percebido que, agora sob as luzes da ribalta, convinha usar um bocadinho de maquilhagem, ter um aspecto mais cuidado, quiçá pintar as unhas.
O motivo pelo qual isso me espantou foi porque eu olhava para o aspecto de Francisca Van Dunem e não conseguia, nem com esforço, ver outra coisa que não uma mulher sofisticada (e de “aspecto cuidado”2).
Onde eu via sofisticação, ela via desleixo. Claramente, aqui como no caso das minhas alunas, o que mudava eram os quadros sociais de referência.
Enquanto escrevia este texto, fui tentando procurar e identificar as fronteiras desta ideia de “aspecto cuidado” dentro do código social-cultural em que me enquadro.
Claramente, posso continuar a não pintar o cabelo, se ficar com mais cabelos brancos. Posso deixar as minhas unhas curtas e sem verniz (e ainda bem, porque estou convencida de que o verniz só fica bem em quem tem mãos bonitas e unhas bonitas), mas o mesmo não é válido para verniz estalado ou rachas nos calcanhares e ontem olhei para os meus braços e achei que não podia andar assim com a pele tão seca. Posso usar maquilhagem ou não usar maquilhagem, mas provavelmente serei vista de lado se usar demasiada maquilhagem ou me pintar de forma muito vistosa. Posso não usar saltos altos um único dia da minha vida,mas não me ocorreria vir de havaianas.
Mas dentro de todo este horizonte de ‘liberdade’3 de contornos difusos, há um nível de cuidado expectável que não sei realmente definir. E que tem noção de que apesar da liberdade para envelhecer (yuhu!) não tenho, por exemplo, liberdade para ter um ar completamente descuidado. Que as tais regras do jogo ditam que “faça um esforço”. Que demonstre ativamente a minha conformidade com as normas.
A forma como interpreto esta exigência vai mudando - mas embora a reconheça como profundamente anti-feminista e, em grau idêntico, classista, a verdade é que nunca a contrariei ativamente.
No dia a dia, não tenho o ar sofisticado da Francisca Van Dunem nem de algumas das minhas antigas professoras da faculdade. Acho que me falta o estatuto? Mas admito o objectivo de evitar descer ao “frumpy”, que não consigo traduzir adequadamente, e vou adaptando o cuidado do aspecto às diferentes situações, nem sempre com o mesmo grau de sucesso. Em média, devo andar ali algures a meio4 da escala.
Por gosto pessoal, porque sou um bocadinho betinha?
Porque me convém e me facilita a vida? #pickyourbattles
Por fraqueza, numa cedência excessiva?
Por vaidade, como acredita o meu namorado?
Por uma mistura de todos estes factores?
Outras ideias, links e contributos, nem todos fúteis:
Este sábado, no Cinema Ideal, há uma sessão sobre Maria Teresa Horta e o Cinema. Vão exibir “Verão Coincidente" (1963), de António de Macedo a partir de um poema dela, e ”O que podem as palavras" (2022), de Luísa Sequeira e Luísa Marinho, um documentário que revisita a história do livro Novas Cartas Portuguesas e que foi Prémio do Público no DOC Lisboa. A iniciativa é da Helena Araújo, a minha amiga mais famosa.
Sobre o aborto, estou como a minha amiga Ana Luísa: já dei para esse peditório (que é como quem diz, para mim também faz parte de um módulo anterior). Mas descobri através do instagram que a Cultura Editora editou em Portugal o Ejacula com Responsabilidade, da Gabrielle Blair (Design Mom aqui no Substack), que sigo há muitos anos, e fiquei genuinamente feliz com o seu sentido de oportunidade.
A conselho da Raquel Dias da Silva, li finalmente o Finalmente o Verão, uma novela gráfica que já estava lá em casa. Fiquei a pensar, como acontece sempre que leio um livro em BD de que gosto, que é um desperdício enorme não investigar com olhos de ver a coleção de BD que já existe lá em casa. Desta vez não me vou limitar a pensar isso - vou mesmo tentar dedicar-lhes alguma atenção e reportar aqui.
Em minha casa, quando era pequenina, não se brincava na sala, tal como na da Carolina. Por isso, em minha casa, hoje, brinca-se na sala. Mas confesso que tenho mil vezes a tentação de mandar os brinquedos todos para fora da sala, chegando a anunciar essa regra para novamente a revogar no dia seguinte.
É possível ter uma casa (mais) arrumada sem limitar as brincadeiras a uma divisão? E, mais importante ainda, é possível ensinar crianças a serem arrumadas quando pessoalmente não o somos?
(se não seguirem mais nenhum, sigam o link para o texto da Carolina)Inspirada por esta newsletter da Rafaela, ontem cheguei a casa, fiz um Aperol Spritz (a minha vesícula não reparou, agora não lhe vão contar), fui à tab das playlists guardadas do Spotify e escolhi esta playlist de jazz etíope, de que já não me lembrava (a minha memória musical é praticamente inexistente, ao contrário da literária, que é parte de mim). Não sei explicar completamente a suprema satisfação com a vida pela qual fui tomada, mas pareceu-me genuinamente que beber Aperol e ouvir Mulatu Astatke enquanto cozinhava um jantar muito simples numa noite ainda fresca de verão podia ser o expoente da felicidade.
E por fim, quão deslumbrante é esta imagem de um pássaro a atravessar uma cascata, vencedora do “GDT Nature Photographer of the Year 2025” (via Curious about Everything)?
Alguém devia estudar os motivos pelos quais líamos tantos blogues de que não gostávamos nada.
Muito haveria a dizer, especificamente, sobre esta ideia de “aspecto cuidado” quando aplicada aos cabelos não lisos no geral e muito especialmente ao cabelo das mulheres negras, mas eu sou a pessoa errada para o fazer. Recomendo Americanah, da Chimamanda Ngoze Adichie ou Esse Cabelo, de Djaimilia Pereira de Almeida.
(professoras do substack, se me estão a ler: há forma de substituir estes links da Wook por links para uma rede de livrarias independentes portuguesa?)
Está-me a custar horrores chamar “liberdade” a isto, mas faço-o por contraste com o que leio de outros países e de outros ramos profissionais e socio-culturais.
Se me conhecerem pessoalmente, façam o favor de não me estragar a auto-avaliação. Imaginem que a minha auto-estima é muito frágil. Em parte, porque às vezes é verdade, e em parte porque é boa política, no geral, andar pela vida como se a auto-estima dos outros fosse sempre frágil.
Fiquei a pensar nisso de o "aspecto cuidado" depender do nosso código sociocultural, vou continuar a pensar. De resto, tenho mãe e três irmãs dela que competem no escalão Ladies of a Certain Age pelo aspeto mais cuidado, o que é profundamente libertador. Desisti há muito tempo. Tomo banho, escovo os dentes, o resto, aguentem.
Resumindo: nascer mulher é nascer fadada ao julgamento!
A vantagem de nunca se ter nascido magra, nem com uma genética nem com uma constituição física que o permitam, é que quando se chega aos 40 já se aprendeu a lidar (muito) bem com a opinião dos outros e estamo-nos a marimbar para o aspecto cuidado. Ainda que saibamos que vamos invariavelmente ser julgadas pela nossa imagem física.
Pessoalmente sou team cabelos pintados, mas tenho a sorte de ter pouquíssimos cabelos brancos que ainda não pinto. Mas o que me deprime mesmo são pelos brancos em certas partes do corpo! Desde flagelo ninguém fala!