alhos, bugalhos e um cheirinho a demagogia
para acabar de vez com o mito da baixa produtividade dos trabalhadores portugueses
Costuma ser mais ou menos anual, um pouco como a época das cerejas e é uma embirração recorrente.
Quando são publicadas estatísticas sobre as horas trabalhadas em cada país ou sobre a produtividade das diferentes economias, existe sempre alguém que vê, liga a ficha à corrente e reinicia o carrossel.
Mais uma corrida, mais uma viagem.
Uma falaciazinha para ganhar coragem.
Trabalhamos muito mas produzimos pouco.
Fazemos muitos intervalos.
Faltamos muito.
Trabalhamos muito mas mal, não nos sabemos organizar.
Há demasiados feriados (Passos Coelho forever?!)
Tudo isto podia até eventualmente ser verdade, não tenho factos que o documentem, mas afecta no máximo muito marginalmente aquilo que define a produtividade de uma economia, que é aquilo que essas estatísticas referem.
A produtividade de uma economia é calculada dividindo o PIB de um ano pelo número de horas trabalhado, em média, pelas pessoas empregadas desse país nesse ano. E o PIB, lembramos para os distraídos, mede o valor de todos os bens e serviços produzidos por um país.
A produtividade de que estas estatísticas falam mede, portanto, a relação entre o trabalho e o valor criado por toda a cadeira de valor do país e não a produtividade de cada trabalhador na aceção popular da palavra.
Imaginemos dois trabalhadores, um dos quais produz uma carcaça e o outro um pãozinho de fermentação lenta feito com farinhas biológicas integrais.
Imaginemos que os custos de produção são de dois cêntimos por cada carcaça tradicional e de cinco cêntimos por cada pãozinho hipster e imaginemos que uma carcaça custa vinte cêntimos e a bolinha mágica para gourmets urbanos custa oitenta cêntimos. Imaginemos que o nível de dificuldade da confeção de ambos os pães é semelhante, que cada trabalhador faz vinte pães por hora e que todos se vendem.
A “produtividade” do trabalhador que faz bolinhas mais caras é várias vezes superior.
Ele é mais produtivo? Se o avaliássemos com base neste indicador de produtividade, destinado a avaliar economias e não trabalhadores isolados, diríamos que sim. Mas claro que isso é um disparate.
Deixemos os nossos padeiros e imaginemos antes dois países com alguma afinidade cultural e geográfica, a Noruega e a Suécia. Um ocupa rotineiramente um dos primeiros lugares da produtividade mundial (aqui, por exemplo, está em quinto lugar), o outro está em 18º no mesmo ranking.
São as pausas para fumar do Nils, a falta de organização da Selma ou as faltas da Birgitta? Não. Há outros factores que poderiam ter uma influência marginal, por exemplo taxas de educação ligeiramente superiores, mas a diferença principal é o facto de a Noruega ter reservas de petróleo e de gás natural que perfazem 23% do seu PIB, valor esse que pode depois ser dividido pelas horas de trabalho da sua população relativamente reduzida. Os nossos suecos,o Nils, a Selma e a Birgitta, podem respirar de alívio, retomar a fika e voltar a arrumar os cilícios com que planeavam fustigar-se por serem pouco produtivos.
Imaginemos outros dois países.
Um produz trigo para toda a Europa e parte do continente africano.
O outro tem uma única mina de diamantes.
Os cidadãos do primeiro são muito menos produtivos que os do segundo?
Imaginemos outros dois países ainda (prometo que são os últimos).
Uns cobram impostos, outros procuram afirmar-se como paraísos ficais, captando fortunas de todo o mundo e servindo de sede a empresas globais com pouco desejo de contribuir para o erário público.
Sem surpresas: os paraísos fiscais têm, de acordo com estas estatísticas, uma produtividade muito maior (neste ranking, dominado pelo Luxemburgo, o Top 10 conta ainda com a Irlanda, as ilhas Caimão e Macau).
Podíamos passar o dia em alegorias.
A questão da “baixa produtividade” da economia portuguesa é uma questão importante, sim. Mas não é, em nenhuma dimensão relevante, passível de ser atribuída aos seus trabalhadores.
A produtividade, assim entendida, é uma questão de escolhas económicas e de gestão e de escolhas políticas, que decidem, no fundo, se apostamos em cadeias de baixo valor ou em cadeias de alto valor.
Se produzirmos diamantes, o Zé Manel pode fazer pausas para fumar e a Zulmira pode faltar todas as semanas para ficar em casa com os gémeos bebés que têm uma virose, que serão festejados pela sua elevada produtividade.
Se produzirmos serviços de baixo valor, serão fustigados na imprensa e nas redes sociais.
Esta forma de medir a produtividade é certamente relevante se quisermos comparar países e economias, mas sempre que escolhemos tirar ilações da produtividade de uma economia para a capacidade de produção dos seus trabalhadores, estamos a comparar alhos com bugalhos.
Haverá certamente alguns ignorantes no meio destes exércitos de comentadores que repetem anualmente este coro boçal da baixa produtividade do Zé Povinho, mas não se deixem enganar - a maioria das pessoas que repete esta ideia sabe que ela é profundamente desonesta e isto é especialmente verdade no caso dos cronistas de economia e negócios.
Então porque a repetem?
É fácil. Porque ao lado das estatísticas sobre o número de horas trabalhadas e a produtividade da economia, vem com frequência o valor dos salários.
E interessa-lhes muito que acreditemos nisto: que ganhamos pouco porque trabalhamos pouco.
De onde veio este texto?
Na semana passada, escrevi um texto que enunciava uma ideia para depois concluir o seu oposto - há muito tempo que não me acontecia tal coisa, mas foi bom para recordar como a escrita é uma poderosa ferramenta de autoconhecimento e de autoavaliação.
Nesse texto, cujo tema principal era o trabalho, o J.J.Amarante, velho colega de outras geografias e uma pessoa que vale sempre a pena ler, partilhou um post do seu blogue que incluía, no fim, um conjunto de links para outros textos que escreveu sobre o trabalho e a necessidade de reduzir as horas de trabalho no mundo ocidental, incluindo este, sobre a produtividade, que me lembrou de que quero há vários anos escrever este texto, para o partilhar de todas as vezes que vir esta falácia repetida.
Fonte da imagem:
Vicky Ng, na Unsplash.
A produtividade é um tema complexo. A produtividade é influenciada por vários fatores, a tecnologia e os meios que os trabalhadores têm à disposição, a formação das pessoas, o tipo e a natureza de cada atividade económica etc.
A nossa baixa produtividade não tem de ver com o tempo que as pessoas estão no trabalho, mas sim do valor que acrescentam às atividades que exercem.
Pegando no exemplo dos pães não há obviamente nada a apontar aos padeiros sob o ponto de vista do trabalho. Mas não acho que seja um disparate, a melhor decisão a tomar seria o padeiro que produz carcaças, virar a agulha e produzir as bolinhas. Se os custos são os mesmos, a taxa de esforço a mesma, tomar a decisão de mudar é a melhor opção sob o ponto de vista da produtividade, porque irá haver aumento dos ganhos. Esse cenário permite uma melhor remuneração das pessoas que trabalham na padaria, porque o "PIB" da padaria cresceu.
O mesmo tipo de decisões de melhoria de produtividade devem ser tomadas para o crescimento da nossa economia com as consequentes benefícios daí decorrentes para todos nós como país.
Que bom texto!