ser feliz nos intervalos não chega
um texto em que a autora diz uma coisa e depois conclui o seu oposto, para sua grande surpresa
Fui educada para desconfiar do trabalho. Para ver na preguiça uma forma de manifestação da inteligência, identificar nas relações laborais as diferentes formas de alienação que encerram e duvidar, sempre, do trabalho como fonte de felicidade e realização humanas.
Aprendi que é possível ser-se profundamente infeliz por causa do trabalho, da miséria, da precariedade, do stress, do assédio laboral ou das relações com os colegas, mas que o trabalho não nos vai fazer felizes. “A carreira”, como gostam de chamar ao trabalho a partir de um certo extrato socio-profissional, é o sítio errado para procurar a felicidade1.
Ainda acredito em tudo isto e, especialmente em Portugal, acho que é urgente discutir o problema das nossas condições de trabalho, da profunda desigualdade salarial e do nosso baixo nível de vida como aquilo que é - uma questão que vai muito para além da gestão do quotidiano e que tem implicações profundas ao longo de várias gerações.
Não tenho dúvidas de que, coletivamente, trabalhamos de mais e recebemos de menos e não tenho dúvidas que trabalhar oito horas por dia, para chegar a umas 40 que são o máximo legal mas são interpretadas por todos como o horário standard, é incompatível com a vida familiar, o lazer, a fruição cultural e a realização pessoal.
Se eu juntar a essas oito horas uma de almoço, uma de deslocações, o que é otimista, oito de sono, que também é otimista e duas de obrigações pessoais e familiares e trabalho doméstico que, já sei, é novamente um cálculo otimista, sobram-nos exatamente duas horas.2
Mas apesar desta profunda desconfiança sobre o impacto do trabalho na felicidade, que mantenho e da qual não me vejo a abrir mão tão cedo, tenho tido ao longo da vida momentos de grande realização pessoal e humana no trabalho. Diverti-me muito, ri até às lágrimas, criei projetos de raiz, aprendi e ensinei, ajudei e fui ajudada, fiz amigos e amigas e trabalhei com equipas extraordinárias.
Antes de começar a escrever no Substack regularmente, verti para aqui uma lista mental de motivos pelos quais era bom viver em Portugal, que tinha começado com uma colega à hora de almoço para tentar combater a minha vertigem (re) migratória3. Entretanto apaguei essa lista, mas um dos seus principais aspectos, e aquele que nunca esqueço quando a recomeço mentalmente num momento de fraqueza, é que gosto muito de trabalhar com portugueses.
Trabalhei com pessoas de muitas nacionalidades ao longo de vários anos e continuo a fazê-lo, a tirar muito proveito dessas interações e a descobrir excelentes colegas em pessoas das mais variadas origens.
Mas tenho encontrado em Portugal, ao longo dos últimos 13 anos, um espírito de equipa e entreajuda, uma capacidade de arregaçar as mangas e fazer, de rir na adversidade, de responder ao inesperado e de corrigir, repensar e arrepiar caminho e uma generosidade e disponibilidade de entrega, com boas ou más chefias, que não tinha encontrado antes4 e que me deixam regularmente grata, comovida e com as baterias repostas (feliz?).
Com o que, descubro eu para minha própria surpresa enquanto escrevo isto madrugada fora, o meu trabalho, as pessoas com quem trabalho e as pessoas para quem trabalho têm de facto tido um impacto positivo na minha felicidade.
E se calhar não podia ser de outra maneira. Afinal, não posso tratar de ser feliz só naquelas duas horas que alegadamente me sobram, pois não?
Enquanto não reduzimos a carga horária, não tratamos da revolução e o trabalho se mantém como forma de organização principal da sociedade, temos de encontrar e criar momentos de alegria, de diversão e de conexão humana no trabalho, de preferência em conjunto.
Compartimentalizar pode ser útil e positivo5, mas a nossa vida não é só o que acontece nos intervalos, férias e fins de semana. Esta semana, guardei uma newsletter que dizia justamente isso, por outras palavras: when you wish away the workweek, you wish away your life. A nossa vida é todos os dias (e é curta).
Outras trabalhadoras:
Este texto foi escrito no âmbito de um coletivo de escrita que junta algumas das minhas pessoas favoritas da internet a trabalhar gratuitamente sobre o mesmo tema todas as semanas:
A Curva
A Gata Christie - Trabalhadores(as)
Dois Dedos de Conversa - Trabalhadora
Gralha dixit - Trabalho
O blog azul turquesa - Trabalhadora
Panados e Arroz de Tomate - Trabalhadora
Quinta da Cruz de Pedra - Trabalhadora
Fonte da imagem:
Ilustração de Andy Warhol, descoberta numa note do Substack, por feliz acaso.
Muito mais tarde, iria descobrir que isto se aplica ao trabalho tal como se aplica ao amor, à família e à geografia. Depois de escapar aos fatores exógenos que têm o poder de reduzir ou obliterar qualquer hipótese de ser feliz, o que sobra é da nossa responsabilidade exclusiva e só pode ser resolvido por nós. Primeiro assusta, mas acaba por ser uma realização muito libertadora.
Se descontarem o meu otimismo, não sobra nada. Deve ser daqui que vem a tão propagandeada relação entre o otimismo e a felicidade.
Que é como quem diz, o meu desejo de mudar de país para ganhar mais, trabalhar menos e ter neve no inverno.
Claro que esta experiência pode ser fruto do acaso, ou da sorte. Tenho vários colegas entre as minhas pessoas favoritas e trabalho com muitas pessoas com quem sei que poderia contar e sei que isto não é necessariamente assim para toda a gente. Também é provável que decorra em parte da forma como eu trabalho e me identifico - provavelmente sou mais portuguesa do que penso, apesar da minha aversão ao calor.
Dizem, eu infelizmente não sei.
Sempre que se fala de trabalho (e eu fiz um PhD que fala muito sobre esse tema!) a primeira coisa que me lembro sempre é que era um castigo para a burguesia na Idade Média. E acho que este simples facto explica tanta coisa sobre o sistema.
O trabalho é um tema que me fascina também. E curiosamente este mês anda aqui a rondar novamente.
A minha experiência com o trabalho ainda não é a que penso que existe e que até descreves: entreajuda, ambiente equilibrado e construtivo. Atualmente encontro esse ambiente na turma do mestrado que estou a fazer. Quando o ambiente é bom, vive-se melhor e não é só ao nível profissional, também tem impacto no bem estar emocional.