Sempre me senti do Minho, ou sinto-me do Minho desde que me lembro.
Não foi como o clube de futebol, que definiram por mim, foi uma escolha consciente.
Não era de Belas, onde os meus pais tiveram a primeira casa, nem de Miratejo, para onde foram a seguir, nem de Almada, nem depois de Lisboa, para onde me mudei aos dez anos.
Eu era do sítio onde as nossas raízes penetravam fundo na terra, onde paredes de granito pareciam garantir um sentimento eterno de pertença, onde avós e tios aguardavam o nosso regresso regular.
Regresso, não visita.
Eu era dali, das ruas de Arcos de Valdevez, do vale que se estende em frente da casa do Alvaredo e um bocadinho de Ponte de Lima, para não deixar o lado paterno de fora.
Mas nunca de Lisboa.
No total, vivi em Lisboa 26 anos, gostando da cidade às vezes mais, às vezes menos, em função do tempo livre para usufruí-la, do sítio onde morava e do acolhimento da cidade - queria-me receber como parte dela ou queria recusar-me, mandar-me para a minha terra ou trocar-me por alguém que pagasse mais?
Costumo ser boa a sentir-me em casa. Quando andei de país em país, naqueles que foram provavelmente os melhores anos da minha vida, chegava, explorava, comprava uma velinha de cheiro, colava dois postais na parede, pousava a Rosa do Mundo numa prateleira proeminente, escolhia dois ou três sítios dos quais me tornava regular e sentia-me em casa. Foi assim em Bath, foi assim em Praga, depois das dificuldades dos primeiros dias.
E foi assim em Berlim, quando da segunda vez cheguei para ficar.
Era fácil ser de Berlim naquela altura porque estavam reunidas todas as condições favoráveis: uma cidade que recebia toda a gente de braços abertos, com rendas acessíveis e ofertas culturais para todos os bolsos e gostos, bastante tempo livre, uma vastidão infinita para explorar, parques, florestas, lagos e uma linda bicicleta vermelha com quatro décadas de história.
Para além disso, ser de Berlim não exigia olhos brilhantes nem juras de amor eterno: Berlim espera que digamos mal dela, que asseguremos semanalmente que um dia nos vamos embora, que a amemos com rezinguice.
Foi assim que me defini, já não sei a partir de quando, minhota de Berlim.
Houve sempre quem me quisesse recusar o “minhota”.
Mas fui feita em Viana, consta por aí. Nasci em Braga.
Tive o primeiro namorado no Jardim de Infância de Ponte da Barca.
Aprendi a ler em Arcos de Valdevez. O primeiro amigo de que me lembro era dos Arcos. Tive a minha primeira (e última) crónica regular de jornal num jornal minhoto.
E não acredito em arroz sem refogado (estrugido, diz-se estrugido).
Terá havido também certamente quem me recusasse o “de Berlim”.
Mas será para sempre o sítio da minha primeira casa, minha só minha.
Do primeiro grande amor e do primeiro grande desgosto.
Do grupo de amigos mais forte, das noites mais longas.
Do primeiro emprego a sério.
Dantes, ria-me desses cépticos - eu é que sabia qual era a minha terra.
Hoje, sinto que têm todos um pouco razão.
Tenho-me sentido falha de pertença.
Continuo a não ser lisboeta - nunca me senti tão desligada da cidade como agora.
Perdi as pessoas-âncora do Minho, como não podia deixar de acontecer. Já não sou sobrinha do Padre Júlio e neta da Leninha do Alvaredo e do Sr. Fernando da Africana.
Mesmo espacialmente, a eternidade das paredes de granito foi reconfigurada de tal forma que ainda não consegui completamente (re)ligar-me.
E não há dúvidas de que já não sou de Berlim, mesmo se, sempre que lá volto, a continue a sentir um pouco minha.
E agora?
Quem sou se não sou de lado nenhum?
Gente de outras terras:
Este texto foi escrito no âmbito de um coletivo de escrita que junta algumas das minhas pessoas favoritas da internet a escrever sobre o mesmo tema todas as semanas.
Esta semana escrevemos sobre #terra:
A Curva - Terra
A Gata Christie
Dois Dedos de Conversa
Gralha dixit - Terra (e Criança)
O blog azul turquesa
Panados e Arroz de Tomate
Quinta da Cruz de Pedra
A eterna pergunta do emigrante, mesmo quando regressa a (uma qualquer) casa. Sou Poveira, um pouco Belga (vivi lá 8 anos e ainda está no meu sotaque quando falo holandês), mas sinto que pertenço mesmo a Roterdão, a cidade que o coração escolheu. Mais do que a estes sítios todos, pertenço à língua Portuguesa, que é sem dúvida a minha pátria, como dizia o outro haha
Para mim tem sido uma actual lisboeta que também foi minhota e ciclista em Berlim que escreve Boas Intenções. As árvores e a maior parte das plantas é que precisam de raízes as pessoas precisam de pessoas para conviver. Nasci no Porto (terra do pai) e passei todos os anos férias no Algarve (terra da mãe), vivendo em Lisboa há mais tempo gostando dos Olivais, não pertenço a terra nenhuma mas a maior parte dos meus amigos e família habitam actualmente em Lisboa.