O Príncipe Reginaldo e a sua mãe procuravam uma princesa verdadeira. Que tivesse a delicadeza de um quebrar de caule1 ou, como se diz agora nos cursos para executivos, a capacidade de saber estar e saber ser (mas instalada de origem).
Infelizmente, encontrar uma princesa verdadeira não era fácil, nos dias de então, em que tanto o conceito de “princesa” como o de “verdade” já estavam sob ataque. Por isso, o princípe e a mãe arquitetaram o teste perfeito: o príncipe casaria com a princesa cuja delicadeza de constituição não suportasse uma ervilha debaixo do colchão.
A primeira menina a ser sujeita ao teste foi a namorada de infância do príncipe. De cabelos claros e lânguidos olhos azuis-pálidos, a jovem condessa lembrava as origens celtas de algumas raparigas de Arcos de Valdevez (citadas no Eça, não é para menos!). Tudo na sua compleição sugeria que passaria uma noite de insónias ao sentir, como não poderia deixar de sentir, a ervilha seca debaixo do colchão.
Combinado o teste, depois de longas negociações com a família da condessinha, que não estava convencida das vantagens da organização de uma festa do pijama para a preparação de um casamento real, a menina jantou, vestiu a camisa de noite, lavou os dentes, deitou-se na cama e, sem suspeitar, dormiu como uma criança.
Acordou no dia seguinte, fresca e radiosa, de pele viçosa e faces coradas e ficou não pouco espantada ao encontrar à mesa uma rainha com cara de sopa azeda e um príncipe choroso, fungão e com os olhos vermelhos.
A rainha, uma mulher prática pouco dada a questionar as suas próprias decisões, interpretou o falhanço da condessa no teste como um sinal inequívoco de que o príncipe se tinha livrado de boa. Mas o príncipe, de coração mais terno, demorou muito tempo a digerir o a perda do seu primeiro amor e aceitar testar uma nova candidata.
Quando essa altura chegou e mais uma convidada aceitou pernoitar no palácio, o príncipe e a sua mãe combinaram encontrar-se ao raiar do sol à porta do quarto onde dormia a jovem donzela, para conhecerem juntos o desfecho da noite.
Mas a desilusão foi imediata: mesmo antes do amanhecer, o ressonar da rapariga informava toda a ala norte do palácio de que ela dormia profundamente. E assim foi: profundamente e até às 11:30, uma hora muito pouco principesca para acordar.
Depois deste novo falhanço, o príncipe começou a por em causa este processo pouco ortodoxo de seleção de noiva e não convidou novas donzelas para dormir no palácio por vários meses.
No entanto, o destino impôs-se: a Princesa Maria Gabriela, que vivia dois reinos mais à frente, teria de atravessar o Principado no âmbito de uma visita de Estado a outro reino vizinha e pedia, oficialmente, guarida por uma noite.
Com ou sem ervilha, o pedido não poderia ser recusado sem causar um grave incidente diplomático pelo que, num dia de tempestade, mãe e filho receberam com honras de Estado a jovem princesa. Depois de um jantar opíparo mas excessivamente complexo, do qual a princesa só conseguiu comer realmente duas batatas fritas, três espargos e uma nuvem feita de ar de chocolate, ela foi acompanhada aos seus aposentos, onde se deitou exausta pela viagem.
A noite foi difícil. Acordada pela fome e sentindo-se desconfortável, a princesa deu voltas e voltas na cama, tentou ajeitar as almofadas, por e tirar os cobertores e por fim, ao tentar sacudir o pesado colchão de palha para o tornar mais fofo, deu com uma ervilha seca debaixo do colchão.
No dia seguinte, quando lhe perguntaram como tinha dormido, tentou ser honesta sem ser indelicada e, para não falar nem da fome que tinha sentido nem do desconforto da cama que lhe tinham atribuído, pôs a culpa na ervilha.
“Não dormi muito bem, não. Nem sei o que terá sido, o cansaço talvez ou então uma coisa muito estranha: uma ervilha debaixo do colchão! Como terá ido lá parar?”
A rainha juntou as mãos em êxtase, estava encontrada a donzela! E logo uma princesa! O Príncipe, incrédulo, nem sabia o que sentir.
Mas fez bem em não se alegrar muito: quando lhe explicaram o motivo da presença da ervilha debaixo do colchão, a princesa ficou siderada.
Por quem se tomavam aqueles dois chalupas?
E como se atreviam a tentar ativamente causar-lhe desconforto e estragar-lhe a noite, mesmo que de uma forma tão bizarra?
Maria Gabriela ordenou às suas aias que fizessem as malas, despediu-se de forma fria e distante e partiu a toda a velocidade, deixando a rainha a tentar recompor-se e o príncipe algo aturdido, mas resignado ao seu destino.
Moral da história: é sempre melhor dormir em casa de um príncipe antes de casar com ele, não vá ele ser do tipo de esconder leguminosas debaixo do colchão.
Outras pessoas a preparar o Dia da Criança
Este texto foi escrito no âmbito de um coletivo de escrita que junta algumas das minhas pessoas favoritas da internet a escrever sobre o mesmo tema todas as semanas.
Esta semana preparamos em conjunto o Dia da Criança:
A Curva
A Gata Christie
Dois Dedos de Conversa
Gralha dixit
O blog azul turquesa
Panados e Arroz de Tomate
Quinta da Cruz de Pedra
A expressão “quebrar de caule”, que me ficou para sempre na memória como uma descrição perfeita para a delicadeza, vem de um poema de Sophia de Mello Breyner chamado “Retrato de uma princesa desconhecida”, que devo ter lido ali pelos 14 anos em casa dos meus avós paternos, onde todos os livros cheiravam a humidade e naftalina.
Nunca mais me esqueci nem desta expressão perfeita, “quebrar de caule”, nem do poema, uma espécie de versão com princesas no lugar de monumentos daquele poema do Brecht sobre Tebas, a das sete portas (e outras maravilhas do mundo).
Opá, Rita, és incrível. Ri-me tanto. Que isto vá para o Plano Nacional de Leitura!!
Gosto sempre de a ler!