Hoje, o nosso coletivo de escrita escreve sobre não sermos iguais, e espontaneamente só me ocorre escrever outra vez sobre a falência desta ideia fundamental dos direitos humanos, a de que não somos todos iguais, mas valemos todos o mesmo. Mas sinto-me demasiado amargurada para escrever novamente sobre Gaza ou sobre o aumento do ódio e da violência racista em Portugal.
Estive mesmo quase a desistir mas, ao ler os textos das minhas companheiras de viagem, por uma associação de ideias que não consigo reconstruir, lembrei-me de escrever sobre facas de pequeno almoço (as one does).
Quando comecei a viver com um alemão, há muitos anos, achei muito estranho que ao por a mesa do pequeno almoço, pusesse uma faca para cada pessoa. Mas o espanto não tinha terminado: então não é que cada pessoa usava aquela mesma faca para barrar o que quer que quisesse por no seu pãozinho de pequeno almoço?
Por exemplo: agora um bocadinho de manteiga, agora Nutella da DDR, agora paté de fígado e agora compota de ruibarbo (tudo ofertas realistas num pequeno almoço alemão).
Felizmente era um alemão muito aberto às influências positivas de outras culturas e concordou comigo que era uma javardice meter uma faca suja de queijo de barrar com alho e ervas aromáticas no potinho da geleia de beterraba açucareira (mais uma vez, tudo exemplos plausíveis).
E eu, que também era uma rapariga muito aberta às influências positivas de outras culturas, também concordei que era boa ideia cada pessoa ter a sua própria faca para a manteiga.
Com o que fizemos um acordo: uma faca para casa coisa, excepto a manteiga, e uma faca de manteiga para cada um.
Hoje, muitos anos depois de nos separarmos e treze anos depois de ter voltado para Portugal, continuo a por quase sempre tanto uma faca a cada pessoa como uma faca ou colher para cada coisa que ponho na mesa.
E, quando me dou ao trabalho de por a mesa do pequeno almoço do fim de semana, também ponho tudo em cima da mesa, como boa alemãzinha a mostrar a abundância do frigorífico pós-guerra1. E faço ovos quentes ao domingo, quando me lembro ou as crianças pedem, nestes copos de pintaínho do Bordallo Pinheiro.
Porque saí desse encontro intercultural enriquecida. Como acontece quase sempre, quando vamos de coração aberto.
Todas iguais, todas diferentes
Este texto foi escrito no âmbito de um coletivo de escrita que junta algumas das minhas pessoas favoritas da internet a escrever sobre o mesmo tema todas as semanas.
Esta semana #naosomosiguais:
A Curva - Não somos iguais
A Gata Christie
Dois Dedos de Conversa
Gralha dixit - Não somos iguais
O blog azul turquesa
Panados e Arroz de Tomate - Não somos iguais
Quinta da Cruz de Pedra - Não somos iguais
Ou como boa portuguesinha que cresceu a ver telenovelas brasileiras?
Espera, uma faca de manteiga para cada pessoa porquê? E nesse caso, porque não uma faca de cada coisa para cada pessoa?
How beautiful. Reading you is always such a pleasure.