Na minha infância e adolescência, Lisboa tinha muitos bairros de barracas - ocupavam encostas inteiras e pareciam fazer parte imutável da paisagem. Abrigavam todo o tipo de pessoas, incluindo imigrantes e pessoas que tinham perdido tudo com a droga, mas também simplesmente famílias pobres, algumas vindas do resto do país, outras em Lisboa há várias gerações.
Numas autárquicas mesmo antes da Expo 98, João Soares, que concorria em coligação com a CDU contra Ferreira do Amaral, prometeu acabar com as barracas. Parecia uma promessa vazia - não era a primeira vez que se ouvia uma ideia parecida e as barracas faziam de tal forma parte de Lisboa que parecia inacreditável que pudessem desaparecer.
Mas aconteceu - mal ou bem, certamente com muitos erros, construíram-se casas para alojar mais de 50.000 pessoas e demoliram-se os principais bairros de barracas da cidade. Li algures que se realojou, para terem uma noção da dimensão anterior do problema, 10% da população da cidade. Uma em cada dez pessoas morava numa barraca, uma em cada dez pessoas passou a morar numa casa. Foi uma revolução - para mim, muito mais radical que a recuperação da zona Oriental da cidade.
Eram outros tempos - respirava-se optimismo no ar, o caminho parecia ser ascendente. Ainda acreditávamos que, tal como os nossos pais, íamos ter condições de vida melhores que a geração anterior.
Entretanto, as barracas recomeçaram a surgir, na cidade mas muito especialmente nos seus subúrbios. São herdeiras de décadas de uma política de habitação que se demitiu de cumprir a Constituição e regular o mercado imobiliário ou intervir nele através da construção ou recuperação de casas.
(é, as casas provisórias são ilegais, mas a modos que o Estado falhou com as suas obrigações legais primeiro, e logo com direitos fundamentais. Lá porque há uma maioria para mudar a Constituição, não convém tratá-la já como letra morta)
Uma falha que seria grave em qualquer lado, mas é especialmente grave num país de salários baixos como o nosso - olhando para o preço das casas e para o valor das rendas, e comparando-o com os salários mínimos e médio, é fácil concluir que morar na área metropolitana de Lisboa só é acessível a quem já cá morava antes, tem riqueza geracional ou rendimentos muito acima da média ou não se importa de partilhar um quarto com cinco amigos.
Ontem, na Amadora e em Loures, voltaram-se a demolir barracas. Com uma diferença essencial - agora, demolimos barracas sem ter alternativas para as pessoas que lá moram. Demolimos habitações precárias com gente dentro porque são sujas, inseguras, indignas, ilegais ou porque representam “um retrocesso nos esforços que o município tem vindo a desenvolver ao longo dos últimos anos”.
Ah bom, se as casas daquelas pessoas não estavam alinhadas com a nossa estratégia…
Famílias inteiras, idosos, mães solteiras. Deixamo-las na rua, onde na verdade já estavam, mas negamos-lhes o direito à placa de zinco que as protegia da chuva, ao painel de contraplacado que lhes servia de porta, à bacia de plástico que fazia as vezes de lava-louça, lavatório e banheira.
Destruímos ou, com sorte, deixamos só a céu-aberto, tudo o que têm, juntado ao longo do tempo. A comida que iam servir aos filhos esta noite, a roupa limpa que lhes permitiria ir trabalhar amanhã, o sofá para o qual amealharam vários meses.
E das crianças, nem das crianças queremos saber?
Queremos, queremos, depois de mandar a sua casa abaixo, ameaçamos levá-las connosco se os seus pais não encontrarem casa onde as ter.
O interesse superior da criança acima de tudo, não é?
Dantes, éramos um país que resgatava pessoas da miséria, da insalubridade, da precariedade. Hoje, somos um país que manda demolir as barracas ou bairros ilegais como se os seus “ocupantes” não fossem gente, apenas um inconveniente na paisagem.
Não tenho a melhor opinião de João Soares, pelos mais variados motivos, mas é incrível recordar o discurso do PS que presidia à coligação Mais Lisboa e compará-lo com este PS de Ricardo Leão, de Loures, e Vítor Ferreira, da Amadora, com as palavras que usam, com as suspeitas que levantam, com as estratégias discursivas nojentas que encontram para negar a humanidade de alguém que já está no chão, com a forma como terão cozinhado este arranjinho conjunto.
Que degradação.
E que vergonha tão grande, ser portuguesa esta semana.
Vergonha, raiva e uma tristeza infinita.
Mais umas notinhas em jeito de parêntesis:
Não duvido que os presidentes da Câmara de Loures e da Amadora tenham agido por convicção - afinal, qualquer um deles já tinha tomado medidas análogas anteriormente, tal como Inês Medeiros, em Almada. Mas é impossível ignorar que, neste caso, as tomaram conscientemente a poucos meses das eleições, na prática em pré-campanha eleitoral.
E que, possivelmente, esta monstruosidade é uma ação de campanha eficaz e que lhes vai trazer votos.O ódio que saiu vitorioso das últimas legislativas, à boleia da extrema-direita mas também do PSD, tem continuado a ganhar terreno. O Chega tem levado o Governo para onde quer, a IL juntou-se ao arranjinho, prescindindo de qualquer identidade própria e o PSD tem-se concentrado em tentar provar que é ele quem veste as calças da coligação anti-imigrantes.
E o PS, que elegeu um secretário-geral cuja promessa única era ser sensato e moderado, fazer pontes, manter uma postura construtiva e de diálogo e deixar o Governo governar, anda à deriva a tentar descobrir o que fazer quando o convite para o diálogo fica sem resposta porque este Governo, a quem já tinha dado carta branca sem exigir condições, prefere construir pontes com os outros meninos.
Não deve ser fácil, preparar as autárquicas do PS neste cenário em que metade da influência do partido ruiu e a outra metade anunciou publicamente auto anular-se. Imagino que dezenas de cabeças brilhantes estejam sentadas neste momento a pensar como vencer as próximas eleições, ou pelo menos como não as perder de forma tão clamorosa.
- E se virássemos à esquerda?, arrisca um.
- Não, isso não pode ser, responde outro, já demos para esse peditório e não correu nada bem. (deram?)
- Ok, então alinhamos também? Surfamos o Zeitgeist? Eles dizem mata, nós dizemos esfola?, propõe outro.
- Olha, pode ser, respondem duas cabecinhas iluminadas. Pode ser já na próxima segunda-feira?
E ficou assim combinado, com a anuência de todos os presentes.
(se sabem que estou enganadíssima, por favor digam-me muito rápido que vou dormir muito melhor)(Update: ok, sem a anuência de todos os presentes, com a condenação inequívoca de muitos militantes. Antes assim, antes assim)
Na minha fantasia, Alexandra Leitão faltava a esta reunião, tal como parece estar apostada em faltar à pré-campanha. Tenho pena - estou convencida de que vai perder e, em verdade, é improvável que vote nela e seria sempre incapaz de votar nela a não ser que se distanciasse de forma veemente dos seus colegas de Loures e da Amadora. Mas aprecio-a e acredito que, pelo menos, contribuísse para elevar a campanha.
Não acredito no ativismo via conta bancária, mas os moradores despejados do Talude e o Movimento Vida Justa precisam de apoio para continuar esta luta desigual. Podem ver do que precisam abaixo, se preferirem contribuir com géneros, ou fazer um donativo através do IBAN PT50 0035 0216 0008 1174 230 68, que foi o que fiz.
Este artigo partiu-me o coracao. Outra crise imobiliaria me tem ocupado muito mais a atencao profissional e pessoal do que a portuguesa, mas vou apanhando alguns desenvolvimentos aqui e ali. Sei que na mentalidade de muitos portugueses, incluindo politicos, esta a ideia de que desenvolvimentos nas grandes cidades se medem em termos de quao atrativas elas vao ficar aos olhos dos estrangeiros esta muito presente. Como se melhorar uma cidade para os seus residentes nao fosse motivacao suficiente. Suspeito que uma das justificacoes para esta decisao tenha sido essa: "o que e' que os outros vao pensar quando virem estas barracas todas?"
Estou desde ontem, no meio de milhentas porcarias mais ou menos graves que me ocuparam, a tentar alinhavar um texto assim. Não iria consegui-lo tão bem, mas também não sei se posso reproduzi-lo, mencionando autor obviamente, no Facebook.