Quando propus o tema “carimbo” para o texto desta semana do nosso coletivo de escrita, tinha acabado de ler um conjunto de relatos sobre o período inicial da revolução cultural chinesa que tinham justamente o carimbo como protagonista. Foi neste livro de Yu Hua, que já aqui recomendei.
Estava muito confiante de que teria alguma coisa a dizer sobre estas histórias que ao falar de carimbos falam de violência, de poder, de autoridade e de engenho, que teriam graça se não fossem assustadoras, que meteriam medo se não fossem tão absurdas.
Entretanto, mudei de ideias e estou convencida de que, com o absurdo subitamente tão omnipresente e tão assustador, falam por elas mesmas.
Deixo-vos Yu Hua:
“Debruço-me agora sobre as marcas de violência reminiscentes da Revolução Cultural que se manifestaram ao longo destes trinta anos de milagre económico. Conto em primeiro lugar uma história sobre o carimbo, esse objeto de madeira, com cerca de quatro centímetros de largura e leve como um maço de tabaco. Ao longo das mais de seis décadas de governo do Partido Comunista, estes pequenos e leves carimbos concentraram um enorme poder político e económico. Era necessário um carimbo num documento de nomeação de um funcionário público, assim como em qualquer contrato entre duas empresas. Da mesma forma, era a presença do carimbo que tornava legais todos os documentos pessoais. Tanto o cartão de trabalhador e de estudante, como as cédulas de nascimento, casamento e óbito só eram válidos depois de carimbados... Podemos afirmar que China não há nenhum lugar sem carimbos e nenhum momento que não façam falta.
Em janeiro de 1967, a fação rebelde de Xangai tomou a câmara municipal pelo meio da violência revolucionária. Depois de se apoderarem dos carimbos, anunciaram o sucesso da tomada do poder. que iniciou a Revolta de Janeiro da Revolução Cultural, uma campanha que rapidamente se espalhou por todo o país. As fações rebeldes e os guardas vermelhos de cada localidade atacaram as instituições governamentais, as fábricas, as escolas e até as comunas populares. Qualquer departamento que tivesse algum poder e carimbos, independentemente da sua dimensão, foi invadido durante a Revolta de Janeiro. Esta potente campanha de tomada do poder na fase inicial da Revolução Cultural foi na realidade uma grande campanha de tomada dos carimbos. Elementos das fações rebeldes e dos guardas vermelhos arrombavam as portas e janelas das sedes das instituições, que depois invadiam aos berros, e destruíam os armários dos escritórios, revirando tudo à procura dos carimbos - os símbolos do poder.
Naquela época, quem se apoderasse dos carimbos detinha o poder absoluto. Podia emitir ordens com valor legal e requisitar fundos revolucionários junto dos departamentos financeiros de cada instituição. Podia ainda condenar à morte as pessoas que não fossem do seu agrado, como também usar o dinheiro do Estado nas atividades da sua fação. Qualquer ação ou decisão, por mais escandalosa ou contrária à opinião geral que fosse, tinha a força de uma lei assim que era escrita e carimbada.
Consequentemente, surgiram combates mortais entre diferentes grupos rivais pelo controlo dos carimbos. Em certas situações, vários grupos atacavam em simultâneo um órgão governamental em busca do carimbo oficial, destruindo portas e janelas e confrontando-se entre si. Muitas vezes o cenário assemelhava-se a um jogo de râguebi. Via-se um grupo a avançar e outro a bloqueá-lo à bruta agarrando as roupas ou as pernas dos invasores. Por vezes, assim que um grupo tomava um edifício e se apoderava do carimbo, descobria que outro grupo ja os tinha cercado...
Quando tinha sete anos testemunhei uma destas situações. A tremer de medo sob um salgueiro, presenciei o ataque revolucionário ao edifício do governo local, que se encontrava junto a um rio. Primeiro chegou um grupo de pouco mais de dez pessoas, que invadiu aquele edifício de três pisos. Quando puseram as mãos no carimbo tiveram apenas tempo para soltar alguns gritos de celebração, até se aperceberem de que chegava uma fação rival. Este segundo grupo era composto por mais de quarenta elementos, todos armados com paus e bastões, e prontamente o edifício estava cercado. O comandante desta fação trazia um megafone e ordenou aos que estavam lá dentro que entregassem imediatamente o carimbo. Caso não acatassem a ordem, ameaçou:
"Entraram de pé mas saem deitados!"
Também através de um megafone, a fação que ocupava o edifício respondeu:
"Nem em sonhos!"
Em seguida ouvi o primeiro grupo a gritar "longa vida ao Presidente Mao!".
Os que estavam cá fora também começaram a gritar a mesma coisa e, empunhando os paus e os bastões, invadiram o edifício. Pelo meio de palavras de ordem como "longa vida ao Presidente Mao" ou "lutar até à morte na defesa do Grande Líder Presidente Mao", as duas fações lutavam furiosamente lá dentro. Fiquei no exterior, junto ao rio, mas ouvia perfeitamente o som de portas e mesas a serem destruídas e também os gritos de dor. O primeiro grupo era em número muito inferior e não tinha alternativa senão ir retirando, até que fugiram todos para cima do telhado de cimento do edifício. Vi dois elementos gravemente feridos a serem carregados pelos companheiros lá para cima e depois pousados no chão, parecendo estar à beira da morte. O segundo grupo também invadiu o telhado. Atacavam barbaramente os outros com os paus, acabando por mandar três pessoas cá para baixo. Um deles era o que segurava o carimbo, e antes de cair usou a energia que lhe restava para atirar o carimbo para o rio.
Os membros do primeiro grupo acabaram por, efetivamente, “entrar de pé e sair deitados", Dos três que foram mandados lá de cima, dois ficaram gravemente feridos e um morreu.
Depois de cair ao rio, o carimbo de madeira manteve à tona e foi flutuando rio abaixo. Desta forma, apesar da vitória militar, o carimbo por que esta segunda fação lutava estava a fugir-lhes. Correram para fora do edifício e seguiram pela margem em perseguição do carimbo, que flutuava para oeste. Um dos membros do grupo despia a roupa enquanto corria e, ao chegar a uma ponte, descalçou os sapatos de pano e saltou para aquela água gelada pelo frio de inverno. Os companheiros gritavam palavras de incentivo a partir da margem e aquele homem foi esbracejando pela água na direção do carimbo flutuante, até que o agarrou quando estava prestes a afundar-se.
Em seguida, os membros desta fação realizaram uma marcha de vitória pela rua principal da nossa vila. Aquele homem completamente encharcado seguia na frente, segurando o carimbo na mão direita erguida e espirrando sem parar. Os seus companheiros de batalha vinham atrás, alguns com sangue a escorrer pelas caras, outros a coxear, o que ilustrava a violência do combate que tinham travado. Gritavam "longa vida ao Presidente Mao" enquanto anunciavam que, nesta vila, a Revolta de Janeiro tinha vencido.
Este homem que se sacrificou pelo carimbo tornou-se um herói revolucionário famoso em toda a vila, mas o seu ato também fez com que ficasse gravemente doente. Nos dias que se seguiram vi-o várias vezes na rua, e de cada vez que vinha a passar parava subitamente. Depois de alguns momentos sem qualquer movimento soltava um sonoro espirro, e só então retomava o passo.
Após a Revolução Cultural, a China entrou num processo de transformação radical. A sociedade chinesa é hoje completamente diferente, mas a enorme importância atribuída aos carimbos não se alterou, pois continuam a simbolizar o poder político e económico. Assim, continuam a surgir por todo o país episódios de lutas pelo controlo de carimbos.
Em várias empresas privadas, devido a conflitos entre acionistas, desenrolam-se constantemente farsas dominadas pela disputa pelo carimbo da empresa. Estas pessoas com um ar extremamente respeitável, vestidas de fato e gravata e sapatos de pele, adotam comportamentos de gangsters mafiosos quando o carimbo está em causa. Começam aos socos e pontapés, voam insultos e escarros, partem cadeiras e copos, sempre de forma totalmente despudorada na frente dos funcionários da empresa. Estas lutas pelos carimbos acontecem também, surpreendentemente, nos escritórios de advogados, os mesmos que reclamam um profundo conhecimento da lei, mas que chegado o momento da disputa partem para um nível de agressividade que não fica atrás dos intensos duelos por uma donzela entre dois bandidos da antiguidade.
Nas empresas públicas também sucede com frequência este tipo de disputas. Apesar de nestas empresas terem sido criados conselhos de administração, o comité do Partido mantém um enorme poder. Em 2007, o secretário do comité do Partido de uma destas empresas decidiu demitir o presidente do conselho de administração, devido a profundas divergências que se vinham a agravar. No entanto, segundo a lei comercial chinesa, apenas o conselho de administração tem poder para afastar o presidente. Em seguida, o secretário do comité do Partido trouxe mais de trinta capangas, que destruíram a porta do escritório do conselho de administração à martelada, serraram o armário no interior da sala e apreenderam o carimbo da empresa.
Estas disputas não acontecem apenas dentro de empresas, públicas ou privadas, mas também entre duas empresas ou mesmo entre dois órgãos governamentais. Conto aqui dois destes episódios da China contemporânea, um passado entre empresas e outro no Estado.
A história empresarial teve lugar no sul do país. Uma empresa perdeu um processo judicial que tinha sido movido por uma outra empresa da região. A principal razão para este desfecho do processo tinha sido o testemunho escrito de uma terceira empresa, apresentado em tribunal pelos queixosos. Os acusados não aceitaram a sentença e, antes de se iniciar a segunda instância do processo, forjaram uma declaração da terceira empresa a seu favor e enviaram um grupo de capangas em busca do carimbo. Invadiram as instalações desta empresa e atacaram o funcionário que guardava o carimbo. que acabou por se refugiar na casa de banho. Os capangas serraram a porta do armário, retiraram o carimbo e carimbaram a declaração forjada. Depois deixaram para trás o carimbo e saíram tranquilamente. Quando se iniciou o julgamento em segunda instancia, esta empresa acusada mostrou com satisfação as folhas carimbadas com a declaração forjada. O representante da terceira empresa afirmou que aqueles documentos tinham sido falsificados e que o carimbo estava ali porque havia sido roubado, mas os acusados negavam de forma absoluta terem posto as mãos no carimbo...
O episódio na administração pública foi uma disputa entre duas instituições governamentais de níveis administrativos diferentes, Cinquenta mu de terra pertencente a uma aldeia foram requeridos pelo governo municipal, mas não foi alcançado um acordo relativa mente ao valor da expropriação entre o comité da aldeia e o município. O governo municipal emitiu então uma ordem administrativa que forçava a expropriação, mas o comité da aldeia não a carimbou, devido à pressão exercida pelas pessoas que ali moravam. Apoderados pela raiva, os membros do governo municipal enviaram um grupo de homens à aldeia para confiscar o carimbo do comité local e carimbar o acordo de expropriação de terra...
Desde a Revolução Cultural até hoje, os incidentes deste tipo são demasiado numerosos para mencionar cada um deles. No entanto, mesmo nos pormenores existem semelhanças impressionantes entre as duas épocas.
Um amigo contou-me que, na cidade onde vivia, uma fábrica foi tomada por duas fações rebeldes durante a Revolta de Janeiro. Uma vez que os dois grupos tinham uma força semelhante, era claro para todos que em caso de confronto pelo carimbo ambos os lados sofreriam pesadas baixas. Sentaram-se então à mesa para discutir como resolver o assunto e chegaram ao seguinte acordo - o carimbo seria serrado ao meio e cada grupo ficaria com uma metade. Assim, quando algum documento necessitasse de ser carimbado, seria preciso o acordo entre os comandantes dos dois grupos, que pegariam cada um na sua metade e carimbariam em conjunto o documento em questão. Depois de serem utilizadas, cada metade continuaria separada. Um resultado interessante era que, no papel, o carimbo aparecia atravessado por uma racha.
Muitos anos mais tarde, durante o período de reforma e abertura. surgiu outro episódio marcado por um carimbo rachado, uma história que está ligada à rápida ascensão de um empresário de sucesso. Este homem, hoje o patrão de uma grande empresa, era na altura o vice-gerente de uma pequena empresa. Ao estilo das fações rebeldes da Revolução Cultural, chamou um bando de capangas e correu o gerente da empresa e depois ameaçou o presidente do conselho de administração, dizendo-lhe que caso não desaparecesse faria. que lhe partissem as duas pernas. Este presidente do conselho administração pouco corajoso seguiu o exemplo do gerente e também fugiu. Depois disso, o vice-gerente proclamou que acumularia as funções de gerente e presidente do conselho de administração.
O presidente do conselho de administração deposto levou consigo carimbo da empresa na sua fuga. Sem carimbo, a empresa não podia funcionar, mas isto não demoveu o novo chefe. Dado que na China de hoje existem em qualquer esquina gravadores de carimbos, ordenou a um subordinado que fosse fazer um carimbo novo. Na China é necessário um documento de um departamento governamental para fazer um carimbo, e assim isto constituía um ato ilegal. No entanto, aquele homem não tinha receio de nada e preocupava-se apenas com dinheiro e poder, não com a lei. O problema é que a existência em simultâneo de dois carimbos iria prejudicar o funcionamento da empresa. O presidente em fuga tinha consigo um dos carimbos e poderia utilizá-lo para carimbar contratos, o que tornaria muito difícil para a própria empresa distinguir contratos verdadeiros de falsos.
Para este homem isto era apenas um detalhe. Quando o subordinado lhe trouxe o novo carimbo, ele ordenou-lhe que fosse à rua comprar um machado. O empregado ficou surpreendido, não percebia para que é que ele precisava de uma coisa daquelas. Foi buscar o machado e depois não conteve o espanto quando viu o seu novo patrão, sentado à mesa do seu gabinete, segurar o novo carimbo na mão esquerda e levantar o machado com a direita para, num golpe, rachar o carimbo ao meio.
Depois de dividir o carimbo em dois, o novo presidente do conselho de administração e gerente emitiu uma ordem: "A partir de hoje, os contratos em que aparece um carimbo rachado são verdadeiros, e os que não têm racha são falsos."
Outros carimbos:
Este texto foi escrito no âmbito de um projeto que junta algumas das minhas pessoas favoritas da internet a escrever sobre o mesmo tema todas as semanas. Esta semana, escrevemos sobre carimbos:
A Curva — Carimbo
A Gata Christie — Carimbo
Gralha dixit — Carimbo
O blog azul turquesa — Carimbo
Panados e Arroz de Tomate — Carimbo