espelho meu
Um texto sobre gostar de se ver ao espelho, mas não precisar de ajuda. Inclui futilidades e Italo Calvino, que isto é uma newsletter multidisciplinar.
A espelho é amigo, cruel é a máquina fotográfica
Na verdade, a minha relação com o espelho é excelente. Ao espelho, de manhã, sinto-me bonitinha, mesmo quando dormi pouco. Ponho um creme, o sérum número um, o número dois, um hidratante, protetor solar, um bocadinho de base não-base muito pequenino, um toque de blush. Visto roupa de que gosto e na qual me sinto bem (enfim, quase sempre). Até os espelhos da rua, aquelas montras demasiado bem limpas que de vez em quando nos devolvem a imagem sem avisar, tendem a não ser demasiado cruéis. Mesmo nua, a minha relação com o espelho é positiva, desde que as instâncias não sejam demasiado espaçadas - não é porque goste necessariamente do que vejo, de um ponto de vista estético, é mesmo carinho. Gosto mais deste conceito, “carinho por si mesmo” do que de amor-próprio.
Mas isto é o espelho.
Depois vem uma qualquer pessoa bem-intencionada e tira-nos uma fotografia. Não é uma selfie - as selfies são como o espelho. Uma fotografia mesmo, duas dimensões como se fossem três.
E de repente… quando é que o meu duplo queixo se transformou num triplo queixo? Que refegos são aqueles no meio das costas? Quem é esta quarentona com um ar baço e cansado e porque é que está a imitar as expressões da minha mãe sem tirar nem por?
Quando digo que não gosto de fotografias, as pessoas pensam sempre que me acho feia ou que não gosto do meu aspecto. Mas não é isso - é que o meu aspecto não é aquele. Acho eu. E quero continuar a achar sossegada, que isto não dá muito jeito a pessoa encher-se de cremes e depois andar com a auto-estima a arrastar-se na lama.
Segmento de futilidades
Como falei de cremes, vou aproveitar para incluir recomendações frívolas: se um grupo de pessoas se junta para falar sobre espelhos e não há uma futilidadezinha para amostra, os leitores vão pedir o seu dinheiro de volta.
Adiante: tenho andado a combater as minhas manchas ou, mais especificamente, um grupinho de manchas maiores na minha bochecha direita, e acho que está a funcionar. À noite uso: retinal a cada segunda noite, ácido azelaico nas outras noites quase todas e um ácido exfoliante ao sábado à noite. E de manhã um sérum hidratante muito levezinho e o sérum Anti-Pigment da Eucerin. Como já usava os outros anteriormente, acho que é este último que está a fazer a diferença. É pena a pipeta, que é uma porcaria, e o cheiro a perfume barato de homem, mas vou definitivamente continuar a usar - as manchas continuam lá, redondas e gordas, mas bastante mais apagadinhas.
Segmento de etiqueta pós-moderna, para uso junto de quarentonas snowflake
Escolhi a palavra gordas para descrever as minhas manchas de propósito : não queria falar sobre o espelho nem sobre a minha relação com ele sem usar a palavra “gorda”. Não o insulto “gorda”, nem a hipérbole “gorda”. Gorda como um substantivo, neutro, sem carga moral. Hei-de voltar a escrever sobre isto num outro dia - “ser gorda”, em sociedade, na saúde, no trabalho, na maternidade é um dos assuntos que me fizeram muitas vezes querer ter um blogue neste longo intervalo em que não escrevi.
Mas outro dia não é hoje, hoje é sobre espelhos.
Neste último ano ou dois, fiquei duas vezes menos gorda - uma em virtude da terceira gravidez, que me levou os quilos que tinham ficado pendurados da segunda e outra, menos significativa, agora, em resultado da dieta forçada pelas pedras da vesícula.
A perda de peso da terceira gravidez deixou-me numa coisa a que chamo o meu ponto zero - o que pesava antes e depois da primeira gravidez, o ponto para onde vai o meu corpo se não estiver a fazer esforços intencionais para perder peso nem a ganhá-lo de forma extemporânea por algum motivo. O sítio para onde volto se fizer dieta e depois deixar de fazer - o peso que aparentemente o meu corpo decidiu ter.
Talvez neste caso, e por este motivo, essa perda de peso se vá manter, não sei, não tenho como saber.
Mas a segunda perda, um dano colateral da dieta forçada perante o fantasma da repetição da crise de vesícula, suponho que vá acabar por ser revertida, a não ser que eu queira ficar de dieta para sempre.
Estou a contar isto para dizer o seguinte, voltando ao tema inicial - percebo que as pessoas reparem nestas mudanças, mas preferia que reparassem em silêncio. Que não me tentassem servir de espelho.
Não que seja um assunto tabu - acabei de escrever sobre ele para toda a internet (hihi, umas 60 pessoas) e esta newsletter é subscrita por pessoas da minha esfera íntima com quem não me importo nada de falar sobre o assunto.
Mas sinto que as pessoas partilham a sua constatação com a expectativa de que a sua boa prestação no jogo “descubra as 10 diferenças” me deixe satisfeita. E não deixa.
Sei de pessoas que ficam genuinamente contentes de ouvir um “estás mais magra!”. Até sei de quem fique ofendido se não ouvir, como se as outras pessoas lhe estivessem a sonegar um elogio merecido (o que faz sentido, não é esta a mensagem da sociedade? Esforça-te e serás festejada! Apreciada! Vista! Notada! Valorizada! Promovida!).
Mas a mim, honestamente, incomoda-me: não gosto de que me lembrem de que me estavam e estão a medir com os olhos constantemente, sinto o “elogio” mais como uma crítica póstuma (da qual aliás às vezes se faz acompanhar) e faz-me muita impressão a forma como o festejam, a alegria, nalguns casos até o alívio notório. E sei que não sou a única.
Havendo estes dois grupos de pessoas, as que valorizam e as que ficam incomodadas, aqui fica uma sugestão: que tal falar com as pessoas sobre as suas oscilações de peso só se forem elas a falar disso primeiro?
Não é difícil, porque o tema é omnipresente. Se as pessoas quiserem falar disso, vão certamente levantar o assunto - a diet culture está tão entranhada na sociedade portuguesa que cria um conjunto de regras e rituais sofisticados que implicam, por exemplo, um ato de contrição em vários atos na presença de uma sobremesa ou de um chocolate. “Ai, para mim só uma pequenina”, “ai, eu não posso, obrigada, engordei imenso agora no Natal”, “não posso agora estragar tudo, ando a portar-me tão bem”, “está mesmo bom, vale a pena o pecadinho”, “depois compensas, ainda falta muito até ao verão”.
Basta esperar pelo momento certo e terão a vossa oportunidade de mostrar que repararam que alguém perdeu peso junto da pessoa certa, da que vai valorizar terem notado e ganhar o dia com o vosso comentário.
Já se a pessoa fizer como eu, sorrir sem os olhos, disser “pois, se calhar” e de seguida mudar de assunto com a delicadeza possível, registem e não insistam.
(ETA: Não é que não possam de todo comentar a sua aparência, não vou tão longe (ver post da aldeia do outro dia). Há tantos terrrenos tão menos minados… Digam-lhes que estão radiosas. Que ficam mesmo bem de lilás. Que o seu sorriso vos ilumina o dia. Ou que a sua tez está mesmo uniforme ;))
Mudando de assunto, portanto:
Este texto foi escrito no âmbito de um projeto que junta algumas das minhas pessoas favoritas da internet a escrever sobre o mesmo tema todas as semanas. À medida que forem sendo publicados, virei cá colocar ligações para os restantes textos, pelo que se leram esta newsletter a partir do e-mail, vale a pena ir ver a versão online. É tudo gente que escreve muito melhor do que eu, pelo que vão daqui muito bem mandados:
“Espelho meu” - Panados e Arroz de Tomate
“Espelho meu” - A Gata Christie
”Narcisa fatela” - O blogue azul turquesa
”Espelho meu” - Gralha dixit
(caso as publicações deste grupo se mantenham às sextas-feiras, é possível que esta newsletter passe para outro dia, uma alteração que já andava com vontade de fazer. Mas vou tentar que não seja absorvida na totalidade pelo novo projeto - estou a gostar demasiado de ter uma casa só para mim)
E agora as coisinhas pequeninas sem nome:
Hoje, cruzei-me pela segunda vez com este mapa, numa página do Facebook de que gosto muito chamada Simon shows you maps. Os dados são excelentes notícias para Portugal - somos o país da Europa que menos compra comida processada. Mas estou curiosa sobre qual seria o resultado se sobrepuséssemos estes dados com o do número de horas de trabalho feminino não remunerado de cada país.
Um texto delicioso sobre orcas e o carácter cíclico da moda, que fui reler para ver se me passava a vontade de comprar uma camisola nova às riscas. Rita Maria, precisas tanto de uma camisola nova como de um salmão em cima da cabeça.
Uma receita nova que as crianças repetiram! (é extraordinário como redefinimos o sucesso na cozinha depois de ter filhos, mesmo quando tentamos evitar a todo o custo fazê-lo)
E por fim:
Tenho tentado um equilíbrio entre a recusa de ceder ao shock and awe de Trump e dos seus mosqueteiros e a necessidade de continuar a chocar-me com o que dizem e fazem, recusando a vertigem do cinismo.
A modos que nesse contexto, retomei a leitura de Um Optimista na América, um conjunto de crónicas que Italo Calvino escreveu entre 1959 e 1960. Parei nesta profecia, com que termino a newsletter de hoje:
Uma noite estava a jantar numa villa do Sul, das de estilo colonial, com o pórtico de colunas. Era um ambiente sério de homens de negócios. A conversação deteve-se, como sucede com frequência nestes tempos, no tema das eleições. Um dos convivas explicava por que motivo apoiava um determinado candidato. (Não é o nome ou o partido que conta: era N. mas os argumentos podiam também ser utilizados por outros, ou N. podia ser também apoiado com argumentos contrários.) Dizia ele que nos momentos difíceis que aguardavam os Estados Unidos, era aquele homem o que convinha, porque era um tough guy, um duro, um tipo ruthless, um que não está com cerimónias. Tentei objetar que os momentos difíceis só aparecem quando não nos apercebemos de quais são os problemas dos países do mundo e ao estudo e ao empenho para resolver esses problemas se antepõem a política da força e o apoio de regimes desacreditados e policiais: já era o tempo das pessoas sensatas e reflexivas – disse eu – e não de tipos tough. Não me entendeu; sim, tudo belas coisas, dizia ele, mas antes de mais nada é preciso mostrarmos que somos os mais fortes, que temos cabeça, que não damos sinais de fraqueza.
Imagem de topo: pintura de Léon Glaize no Metropolitan Museum of Art, via Cosmos.
Aqui vem a fútil comentar que já pensei várias vezes comprar esse serum da Eucerin, mas que tenho hesitado exactamente porque uma vez vi uma review que dizia que o cheiro era horrível.